sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Resenha: Fahrenheit 451 (Ray D. Bradbury, 1953)

Ed. Globo (2009), 256 páginas
"E pensei nos livros. E pela primeira vez percebi que havia um homem por trás de cada um dos livros. Um homem teve de concebê-los. Um homem teve de gastar muito tempo para colocá-los no papel. E isso nunca havia me passado pela cabeça."

Fahrenheit 451, "a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima", é um clássico da distopia, assim como "Admirável mundo novo", "Laranja mecânica" e "1984". Nesta obra, Bradbury, conhecido por seus livros de ficção científica, conta uma história futurista na qual a maior tecnologia já desenvolvida pela humanidade é sistematicamente eliminada a pretexto da garantia da felicidade da população: os livros são queimados, paradoxalmente, por bombeiros, um dos quais Montag, o protagonista que enunciou a citação acima.

Huxley lidou com o (ab)uso da Ciência, principalmente da Genética, para a maximização do prazer de viver; Burgess, com o emprego do condicionamento neopavloviano (lavagem cerebral) para combate à criminalidade; Orwell descreve uma sociedade em que o mal (tudo o que contraria as diretivas do Partido) é "vaporizado", em que a história é um eterno palimpsesto, apagada e reescrita, e o controle extremo sobre as pessoas visa reformar a própria mente, tornando qualquer antagonismo ao poder tecnicamente impensável. Bradbury escreve sobre a ponte que liga nossos dias a esses prováveis futuros, que, se ainda nos parecem hoje lugar (-topia) que dificilmente poderíamos aceitar habitar (dis-), não parecem inverossímeis alternativas de amanhã dados os passos que a sociedade já tem dado em direção a ele: a busca de prazeres imediatos ("modernidade líquida", segundo o filósofo Zygmunt Bauman), caracterizada em "Fahrenheit 451" pela substituição dos livros por mídias simplificadas (simplistas) e vazias, como a TV interativa. Afinal, sempre incomodou que os livros tenham "consciência demais do mundo".

Ray Douglas Bradbury
(1920 - 2012)
Bradbury escreveu "Fahrenheit 451", que se chamaria "O bombeiro" (The fire man), na biblioteca da Universidade da Califórnia, fugindo de um inconveniente: toda vez que ia para a garagem datilografar o texto, suas filhas pequenas apareciam e não lhe restava alternativa a não ser ir brincar com elas. Como isso punha em risco a renda familiar, procurou a universidade e alugou um posto com máquina de escrever por 10 centavos/meia-hora. Levou nove dias para escrever seu "romance barato". "Ali eu vadiava, perdido de amor, andando pelos corredores e percorrendo as estantes, tocando os livros, tirando-os das prateleiras, virando as páginas, devolvendo-os aos seus lugares, afogando-me em todas as coisas boas que constituem a essência das bibliotecas. Que lugar [...] para escrever um romance sobre a queima de livros no futuro!". (Ele conta essa história no posfácio desta edição.)

A queima de livros, contudo, não é o tema da obra. O romance pinta o cenário, na verdade, não muito futurístico, porque já presente, de uma escolha social institucionalizada pelo Estado autocrático. É a mesma questão da felicidade e do que a mente humana julga necessário fazer para obtê-la, abordada nos outros clássicos distópicos. O caminho da sociedade descrita por Bradbury foi o da leviandade, do torpor intelectual, do imediatismo de um mundo em velocidade. Para o autor, "louco de atirar pedras quando se trata de livros", a percepção é a de que as pessoas estão cansadas de pensar demais, que o conhecimento faz o homem se sentir bestial, que se preocupar com o porquê das coisas deixa-o infeliz, e para isso contribuem os livros cheios de "teorias e pensamentos contraditórios". "As pessoas querem ser felizes [...] é para isso que vivemos [...] para o prazer e a excitação"... Então, o próprio público deixou de ler por decisão própria e, através do Estado, provê-se de diversões fáceis, que demandam pouco esforço da razão. Até mesmo os jornais "informam" em quadrinhos de fácil apreensão, como que escritos e desenhados para crianças. "As pessoas não conversam sobre nada [...] O que mais falam é de marcas de carros ou roupas ou piscinas e dizem 'Que legal!'. Mas todos dizem a mesma coisa e ninguém diz nada diferente de ninguém". "Resumos de resumos, resumos de resumos de resumos [...] no ar, tudo se dissolve! A mente humana entra em turbilhão [...] a centrífuga joga fora todo pensamento desnecessário, desperdiçador de tempo!". "A vida é imediata [...] o prazer está por toda parte". "A mente bebe cada vez menos".

Guy Montag é um bombeiro (um incendiário) que começa a se sentir incomodado com algo que não entende. Sente atração pelo inimigo público número um, os livros, "milhões de livros proibidos", que tem o dever de incinerar, atendendo a denúncias contra os últimos recalcitrantes que ousam não apenas tê-los, mas a perpetrar o crime dos crimes: lê-los! Tocado pela conduta pouco ortodoxa de Clarisse McClellan, que ele encontra por acaso ao voltar para casa, e por um incidente durante uma operação de queima de livros, Montag se envereda pelo caminho sem volta do despertar da consciência sobre a real natureza do livro, entrando em choque com sua chefia, com o Estado, que vai se intensificado ao longo do texto ao ponto do frenesi, numa narrativa caleidoscópica que conduz o leitor a um desfecho psicodélico: com Montag, entendemos o que o livro tem de tão subversivo, de tão impactante sobre as vidas individuais e coletivas...

Em 66, François Truffaut rodou o filme homônimo baseado no romance, e apresentou um destino diferente para um dos personagens do livro. Bradbury mesmo, achando a narrativa original muito sinistra, adaptou a obra para o teatro provendo o mesmo arranjo do cineasta francês. Todavia, a despeito da genialidade de Truffaut, o filme carece do que o autor chamou de "a alma do intelecto": a digressão, que, entremeada com o enredo alucinante, enriquece "Fahrenheit 451", o livro, com reflexões mais que pertinentes para aqueles que observam preocupados a emergência de mídias modernas através das quais as pessoas mais se esvaziam do que põem para dentro de si, e se nivelam bor baixo. "Cada homem é a imagem de seu semelhante e, com isso, todos ficam contentes, pois não há nenhuma montanha que os diminua, contra a qual se avaliar [...] Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o. Descarregue a arma. Façamos uma brecha no espírito do homem. Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido?" (grifo nosso).

Para aqueles que preferem assistir ao filme, mais uma vantagem do livro: Truffaut não levou às telas um dos personagens mais aterrorizantes da literatura, que representa a vingança do Estado, da Sociedade, contra o indivíduo excêntrico, como as mitológicas Fúrias; o terror mecânico que encarna a perversão do poder político e da Ciência: o Sabujo! Um garantido frio na barriga para aqueles que preferirem "decantar" a experiência dessa leitura!

Cena de Fahrenheit 451, filme dirigido por François Truffaut em 1966. Aqui, marcante cena da queima de livros em que a leitora denunciada se imola junto a eles. 

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