quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Resenha: "Ensaio sobre a lucidez" (José Saramago, 2004)

Companhia das Letras (2004), 325 páginas
"Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento, distribuídos pelo partido da direita, treze por cento, pelo partido do meio, nove por cento, e pelo partido da esquerda, dois e meio por cento. Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco."

Lembro de tomar conhecimento deste autor quando da sua indicação ao Prêmio Nobel de Literatura. O reconhecimento de um escritor da língua portuguesa pela academia pesou para eu buscar conhecer suas obras (hoje, levo em consideração outros critérios, mas estamos falando de uma jovem que se encantava com prêmios e elogios das críticas literárias). Para minha sorte, a indicação e o prêmio atribuídos ao escrito tinham de fato valor. Considerando a aproximação das eleições, acreditamos que a presente obra vem a calhar no atual contexto.

E assim, da leitura da citação acima, retirada da obra objeto da presente resenha, tens, prezado leitor, a noção da temática que permeará a narrativa. Romance escrito depois do "Ensaio sobre a cegueira" (que merece uma resenha futura, mas desde já recomendo a leitura), temos agora no país fictício da obra em questão a inundação de votos em branco que ocorrem na eleição municipal da capital. Não um percentual mínimo, mas um valor que corresponde a mais do que a metade (o que chamamos de maioria absoluta).

Percentual este que aumentará quando da nova tentativa de eleições, quando as abstenções foram zero, nenhum voto nulo, e oitenta e três por cento de votos brancos! Ironicamente, o povo chamado pelas autoridades para o exercício da cidadania, vai às urnas em sua totalidade agora, todavia não mudam o quadro, pelo contrário, agravam. Tornam mais evidente a sua insatisfação. Ressalto que não há motim, nem passeatas, ou discussões acaloradas. Um simples exercício da cidadania, cuja resposta é dada no silêncio de assinalar a cédula e depositá-la na urna, ou melhor, de não assinalar. Nenhuma expressão oral de insatisfação ou ato de desordem. Somente o de não indicar qualquer representante que seja digno de exercer o papel político em comento.

A narrativa flui num estilo próprio do autor: diálogo e narração se misturam, dando ao leitor, depois de se acostumar, uma impressão de conversa contínua. Não há o uso dos travessões que indicam os diálogos, que são notados pelo leitor no uso das vírgulas e, inevitavelmente, pelo contexto que a escrita nos leva. Confesso que o meu primeiro contato deixou-me atordoada, pois estava habituada a estilos estéticos que faziam o uso das regras de identificação dos tipos de discurso direto e indireto.

Sem contar que a obra é escrita no português de Portugal, portanto encontraremos palavras e uma maneira de se expressar que não é típica do nosso português brasileiro. Todavia, em nenhum momento isso dificulta a compreensão ou diminui o interesse que a obra desperta. Aliás, vejo nisto um exercício de apreciação de estilos que poucos escritores ousam fazer. Eles dão à obra uma mensagem que vai além das palavras, mas que denotam a arte que existe no exercício da escrita. Contar uma boa história vai além do bom uso do idioma. Fazer arte com as palavras é que torna determinada obra daquele escritor um clássico. Este, por sua vez, é detentor de grande responsabilidade na mensagem que pretende passar.

José de Sousa Saramago
(1922 - 2010)
E a mensagem contida nesta obra é permeada pela ironia. Ora, os cidadãos são conclamados para o exercício da cidadania. A escolha de seus representantes políticos pelo voto secreto a ser depositado nas urnas. Um exercício da democracia, que tem por escopo o respeito pelas diferenças e opiniões. Mas quando esta escolha, esta demonstração de opinião significa expressar a insatisfação, ou até mesmo a indiferença com quem irá representá-los, pois todos lhes parecem tão iguais na proporção que pretendem se apresentar diferentes? Note-se que não são votos nulos, mas votos brancos. A simples decisão de nem ao menos escolher a rejeição, a de não concordar ou discordar com qualquer das ideologias ou propostas apresentadas. A decisão de total indiferença de saber quem estará no poder, pois no fim é o status de estar nele ou não que determina a política que de fato será seguida.
 
O exercício da cidadania, nestes termos, no entanto, leva o governo a decretar Estado de Exceção. Quem poderá está por trás de tamanha insurgência? Quais dos partidos teriam arquitetado tamanha revolta, com o intuito claro de golpe? Quem, quem poderia ter a coragem de ferir a democracia fazendo do momento da escolha a opção pelo voto em branco? Não se questiona o que levou uma população inteira a votar, em sua maioria absoluta, em branco; qual o recado que estava sendo dado. Mas sim a preocupação de como manter um sistema que não encontra respaldo e confirmação em suas próprias eleições.

Estimado leitor/eleitor, eis uma obra que vale a pena considerando o atual contexto político do país. Que te leve a uma reflexão, ou mesmo que te faça perceber o que já habita no teu coração. Aproximando-se o momento das eleições que, dentre os cargos a ser ocupados, está o da presidência da República, é momento de transformar este exercício obrigatório da cidadania um ato que reflita o que de fato pensamos em relação aos candidatos que se apresentam. Seja qual for a sua escolha, uma coisa posso garantir, esta leitura não lhe decepcionará.

Apêndice: Votos brancos e nulos no Sistema Eleitoral do Brasil

A Constituição Federal de 1988 diz, em seu art. 77, parágrafo 2º, que é eleito o candidato que obtiver a maioria dos votos válidos, excluídos os brancos e os nulos. Ou seja, os votos em branco e os nulos simplesmente não são computados. Por isso, apesar do mito, mesmo quando mais da metade dos votos for nula não é possível cancelar um pleito.

Mas, como bem explicado pelo meu colega de trabalho Benjamin Ruiz, os votos brancos e nulos, no nosso sistema eleitoral, de fato não possuem peso algum, pois são considerados inválidos. Todavia, se votos considerados válidos, em decorrência de irregularidades relacionadas ao candidato, tornam-se nulos, esta situação sim pode levar a nulidade de uma eleição.

Ainda que, na nossa realidade política o eleitorado não tenha força para anular uma eleição, o fato de uma maioria absoluta da população votar em branco, como aconteceu na obra resenhada, não é algo que se pode ignorar. A repercussão que isso denota pode não ter efeitos práticos, mas reflete o grau de reflexão e descontentamento de uma nação. Não se pode fechar os olhos para o quanto estamos cada vez mais desacreditados nos nossos representantes.

Quer saber como funciona na Justiça Eleitoral brasileira a questão de votos nulos ou brancos? Acesse o artigo que trata sobre a temática: Eleições 2014: mais de 50% dos votos nulos não podem anular um pleito, que está publicado no site do Tribunal Superior Eleitoral para maiores esclarecimentos (contribuição de Giselle de Oliveira Brito).

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