quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Palestra da Bienal: Debate sobre Adaptações Literárias


Mesa Redonda: DEBATE SOBRE ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS: LER OU NÃO LER?
Debatedores: Fernando, Silvana, Éster e Maria José / Mediadora: Silvana (*)


Quase todos nós já lemos algum livro, clássico ou contemporâneo, traduzido de uma língua estrangeira. Neste caso, poderíamos dizer que o que lemos foi a obra original, ou seria uma adaptação? Estas e outras questões foram levantadas durante este debate. As abordagens foram diversas, na medida em que cada participante focou a sua área de atuação profissional, o que enriqueceu o diálogo. Assim, considerando estas especialidades, podemos dizer que o debate teve um viés teatral, literário e outro educacional.

Devo inicialmente informar que não sou nenhum especialista em adaptações literárias. Apenas um curioso que assistiu a um debate sobre o assunto, na última bienal do livro, realizada em São Paulo, entre os dia 22 a 31 de agosto último. Deste modo, tudo que eu escrevi neste artigo são pontos de vista das pessoas que participaram do debate, estas sim, profundas conhecedoras do assunto.

Este artigo possui três etapas. Vamos assim denominar: na primeira, eu transcrevo as explanações de cada um dos especialistas; na segunda, eu faço um pequeno resumo das partes mais importantes de cada explanação; e, na terceira, é a conclusão. Embora ache bem interessante a transcrição da fala dos participantes, o leitor mais apressado pode passar direto para a etapa dos resumos, que também conseguirá captar a essência do debate.

Embora o assunto seja muito polêmico, percebi que todos defenderam a necessidade das adaptações, porém, desde que sejam seguidos alguns critérios básicos. Então, na verdade, eu diria que não houve bem um debate, mas sim uma reflexão sobre o tema “adaptações”.

Éster – No teatro, a adaptação não tem a preocupação de facilitar, mas sim de ser fiel e claro. O palco é um lugar muito objetivo e direto. O palco não permite a digressão ou a reiteração. Muitas vezes o não dito já está suposto. Não precisa esclarecer. É preciso ser ágil e sucinto.

Por isso, para se fazer a adaptação de um clássico, a limpeza de tudo que está a mais deve ser feita. As pessoas que vão ao teatro não suportam ouvir a mesma coisa duas vezes. Diferente do teatro na época de Shakespeare, onde haviam muitos atos, e em cada ato repetia-se parte do ato anterior, no teatro contemporâneo não se deve repetir. Na verdade, na época de Shakespeare um ato tinha a exata duração de uma vela. Dai haver tantos atos. Mas, no teatro contemporâneo, para contar uma grande história, não precisamos de muito tempo, basta ser direto.

O segundo aspecto a ser destacado é a importância de percebermos qual é o ponto focal de uma obra. Não dá para fazer uma adaptação sem entender o ponto focal desta obra. O ponto que é o verdadeiro motivo do conflito ou da narrativa. Em Coriolano, de Shakespeare, por exemplo, só entendemos o personagem Coriolano, quando percebemos que ali há uma luta dos aristocratas (patrícios) contra a plebe. A luta do senado contra uma plebe faminta e desesperada. A luta de classes que fez surgir a democracia. Quando você encontra o ponto focal você encontra o jeito certo de fazer e de transmitir essa ideia. Quando ficamos na dúvida podemos fazer a história pender para um lado que não vai explicar a obra.

Fernando – Toda tradução é uma adaptação. Em Ulisses, por exemplo, James Joyce teve que criar ou recriar palavras novas, expressões novas, para tentar trazer aquela ambiência da obra original. Mais recente saíram outras duas traduções de Ulisses, ambas muito bem feitas e totalmente diferentes entre si, no espírito, no modo de ver e de escrever. Então nós nos vemos diante de três obras diferentes, mas que gozam de sentido. Então, minha preocupação é manter o sentido. O importante é manter o sentido.

O que faz de Shakespeare tão grande são muitas coisas, uma delas é o sentido do dito e do não dito, que ele coloca em seus personagens. É lugar comum dizer que o verdadeiro inventor da psicanálise é Shakespeare, Freud foi apenas o codificador. Então haveriam várias formas de se traduzir Shakespeare. Você pode traduzir Shakespeare de forma que ele seja lido como uma obra do século XVI ou XVII. Traduzir com a linguagem de Camões, de Gil Vicente. Mas aí o sentido para o leitor contemporâneo se perde, em grande parte, porque a língua vai mudando e as pessoas não compreendem. Minha preocupação então é essa: captar aquele sentido profundo. Sentir aquela emoção e reflexões que estão em Shakespeare. Então você sacrifica aquela linguagem antiga em prol de uma linguagem atual O meu compromisso maior é com o sentido. Eu tenho que escrever como se Shakespeare fosse brasileiro escrevendo aqui e agora, porém sem tirar ou acrescentar nada do que ele escreveu. O importante é captar o sentido.

Maria José (Masé) – Na escola deveríamos nos perguntar: Qual é a cultura literária que queremos oferecer para esta geração? As escolhas não poderiam ser ao gosto do educador. Mas quando você vai pensando ao longo dos diferentes anos, deveria haver uma proposta. A escola deveria seriamente pensar: Que educação literária queremos dar aos nossos alunos?

O Clássico tem lugar nesta educação literária? Sim, é a resposta mais fácil de dar. Porque de certo modo a escola já está implicada com eles. Mas e o contemporâneo? Quando a gente discutiria o contemporâneo?

O Contemporâneo pede uma certa ousadia. Porque uma coisa é você indicar um título, uma tradução ou uma adaptação de uma obra de Shakespeare. Outra coisa é você adotar uma obra de um autor contemporâneo que ainda não está respaldado. E a gente sabe os entraves de colocar uma obra literária na escola mediante uma diversidade de sensibilidades. Principalmente a tirania do politicamente correto. É muito complicado, e as vezes a gente já começa a fazer uma autocensura. O que é perverso, sob o ponto de vista literário.

O terceiro aspecto que eu acho importante pensar na escolha, além do clássico e do contemporâneo, seria a diversidade. Uma diversidade que contemplasse os múltiplos gêneros, diferentes autores e temas. Que abrisse a possibilidade de um leque para que o leitor encontre a obra certa. Não existe quem não goste de ler, existe quem ainda não encontrou o livro certo (Ruth Rocha). Um livro que de algum modo fale ao seu coração. Então uma proposta que leve em conta uma boa formação deveria abordar estes três aspectos: a leitura de autores clássicos, a leitura de autores contemporâneos e a diversidade.

Não vale a pena ler algumas adaptações e vale muito a pena ler outras. O escritor adaptador em primeiro lugar é um leitor que leu a obra e que vai emprestar a sua palavra. Então neste sentido é fundamental a qualidade do texto de quem adapta. Penso que essa é a chave. Porque o que o adaptador faz é também uma mediação de leitura, porque ele aproxima de uma criança ou de um jovem uma obra que talvez ele não fosse ler se esta tradução ainda fosse num português que a gente não fala mais. Então, é possível ler adaptações sim, com este compromisso ético que o adaptador tem de tentar fazer com que a experiência literária de quem lê seja o mais próximo possível da obra original.

Silvana – Nós criamos dois tipos de adaptações sendo uma para crianças e outra para jovens. Para crianças, pensamos em levar os clássicos de aventura. Não só de pura aventura, mas de aventura que tenham filosofia, reflexão e história. Que tenham ação e pensamento juntos. Porque fazer um livro só de ação é muito fácil, mas o importante é colocar a reflexão.

Através da leitura as crianças aprendem sem estudar. É como uma mágica, porque tudo vai entrando, depois você tem aquele tesouro dentro de você sem se aperceber, como pura magia.

Eu traduzi Os Três Mosqueteiros, que na sua versão original tem mil e duzentas páginas, sem parágrafos. Os diálogos estão no meio da narração. Na hora de traduzir é muito difícil, porque a gente tem que descobrir onde está o pensamento e onde está a fala. Não há travessão. Eu vou traduzindo o texto, e depois vou enxugando este texto. Busco sempre reforçar o conteúdo, a essência da obra, que é aquilo que fez com que ela se tornasse um clássico.

Vou tirando personagens secundários que não vão fazer falta, e grandes digressões que os autores fazem. No original de Os Miseráveis, de Victor Higo, por exemplo, tem páginas e páginas descrevendo uma rua de Paris, uma região, um bairro, uma construção. Ora, para um leitor adulto que gosta de leitura isso é maravilhoso. Mas para um jovem, que em geral não tem paciência, ler um capítulo inteiro sobre um hospital de Paris é muito difícil. Então, estas grandes digressões eu vou sintetizando.

E eu procuro manter não só o conteúdo, mas também o estilo do autor, na medida do possível, é claro, pois uma tradução é uma adaptação. Mas dentro de suas diferenças eu procuro manter o estilo. Por exemplo, eu traduzi O Germinal, de Émilio Zola, que é voltada para jovens que estejam no final do fundamental ou no ensino médio, para se iniciarem nesta coleção que tem como foco os clássicos com fundo social mais forte. Émile Zola é um autor de estilo relativamente moderno. Ele era jornalista, usava frases curtas e bem diretas. Então, não tinha porque eu mudar este estilo. O que eu fiz foi uma edição mais concisa, menos volumosa que a original. Já, por exemplo, na tradução de Balzac, foi diferente. O Balzac também é do início do realismo, mas ele ainda tem muito de romântico, com longas frases, longos parágrafos, usa um vocabulário mais elaborado, em relação a Émile Zola. Ele adorava mergulhar num assunto. Assim, quando tinha uma pendência judicial na obra, aí ele descrevia todo o trabalho dos juízes, dos advogados, a composição do tribunal, o papel de cada elemento do tribunal, inclusive a contabilidade, em mais de quarenta páginas. Vai fazendo isso criticamente, muito bem feito, mas muito longo para um jovem.

Fernando - Quando nós traduzimos clássicos para crianças, nós estamos sim facilitando a leitura. Contudo há um compromisso. Em Robinson Crusoé (Daniel Defoe - 1660 ou 1661 – 1731), por exemplo, há uma discussão entre Robinson e Sexta-feira sobre religião. Robinson quer converter Sexta-feira e Sexta-Feira tem religião indígena e pergunta para Robinson: "Mas esta história de Deus e diabo, se Deus é tão poderoso, porque ele não dá logo uma pancada na cabeça do diabo e acaba logo com esta história?". Moby Dick também é um livro cheio de discussões, religiosas, sociais. Então a gente faz questão de preservar estes momentos capitais de reflexão, inclusive para as crianças. 

Logo, pelas explanações dos participantes do debate, acima transcritas, podemos perceber que tivemos três abordagens distintas sobre o tema do debate: a primeira considerando as adaptações no âmbito do teatro, a segunda considerando uma reflexão das adaptações na educação escolar, e finalmente uma explicação de como é feito uma tradução, ou seja, quais os cuidados que se deve ter para fazer uma boa tradução. 

Para Éster Góes, o palco do teatro exige objetividade e agilidade, o que só se obtém com o uso de uma linguagem direta, sem digressões e reiterações. Isso requer uma adaptação enxuta, limpa de tudo o que não é importante e está a mais na obra. E ainda mais, uma adaptação no teatro não tem a preocupação de facilitar, mas deve ser fiel e clara.

Para obter estas características, segundo Éster, o adaptador precisa perceber qual é o ponto focal da obra que será adaptada para o teatro. Sem captar o verdadeiro motivo do conflito ou da narrativa, ele não conseguirá fazer uma adaptação clara e fiel da obra. Segundo Éster, se você encontra o ponto focal da obra, você encontra o jeito certo de transmitir a ideia desta obra, com clareza e fidelidade. A dúvida quanto ao ponto focal da obra pode levar o adaptador a pender para um lado errado, não fiel a obra.

Para Fernando, toda tradução é uma adaptação. Quando uma obra é traduzida, o tradutor precisa transpor a linguagem inserida num determinado contexto de espaço, de tempo e de cultura, para outro, totalmente diverso. É como se aquela linguagem tivesse congelado, no tempo e espaço. E realmente congelou. Daí a importância de captar o sentido dos diálogos, das narrativas e das reflexões contidas na obra. Quando o tradutor capta o sentido (Fernando) e o foco (Éster) da obra, ele fica com liberdade para traduzir, sem a preocupação de traduzir palavras, mas sim transmitir o sentido, com clareza e fidelidade. O que faz de uma obra um clássico é justamente o sentido que o autor conseguiu transmitir através dos seu personagens, diálogos e reflexões. Então, captar o sentido da obra original é fundamental para o tradutor.

Silvana é uma tradutora e nos explica quais os cuidados que um tradutor deve tomar para manter a qualidade de uma obra ao traduzi-la. Segundo ela, uma boa tradução não deve somente transmitir uma história, uma aventura, mas também deve-se preocupar em conduzir o leitor às reflexões e à filosofia contidas na obra. A tradução para crianças e jovens visa facilitar a leitura, mas não se pode perder a essência da obra. Aquilo que faz dela um clássico da literatura.

Maria José (Masé) faz toda a sua explanação focada na educação escolar. A sua preocupação central é com o planejamento da cultura literária nas escolas. Para Masé, antes de mais nada precisamos perguntar que tipo de cultura literária queremos dar aos nossos alunos. E já respondendo a este questionamento, ela nos informa que devemos oferecer uma literatura que contemple o clássico e o contemporâneo, mas que tenha também a preocupação de garantir a diversidade. Uma diversidade que comporte os múltiplos gêneros, os diferentes autores e temas. Assim, ela prega uma democracia literária nas escolas, dando a oportunidade da escolha aos alunos.

Deste modo, compilando a essência de cada uma das explanações, podemos dizer que uma boa tradução deve conter algumas características fundamentais para manter a qualidade da obra original. Numa peça teatral, uma boa adaptação requer que o tradutor capture o ponto focal da obra original e, em seguida, limpe e enxugue a obra dos excessos, para torná-la clara, de fácil compreensão, através de uma linguagem direta, objetiva e ágil. Na tradução literária o importante é captar o sentido da obra, requisito indispensável para passar aos leitores o seu conteúdo reflexivo e filosófico. Já na escola, cabe aos educadores indicar boas adaptações de clássicos e contemporâneos, mas abrindo um leque de opções, de modo que os alunos possam encontrar a leitura com a qual mais se identificam, dentro de uma diversidade de temas e estilos.

Esta foi a última postagem referente à 23ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. O intuito foi trazer um pouco das discussões que foram oferecidas ao público que frequentara o referido evento. Sem dúvida, o maior ganho de ter comparecido foi de participar das palestras: temas relevantes quanto ao aspecto do incentivo à leitura, com profissionais qualificados para discutir as questões propostas. Mais do que ter livros, precisamos ser leitores conscientes, críticos e transformadores. O valor da leitura está na transformação que ela faz no indivíduo, permitindo-o uma interpretação do mundo por outras perspectivas.

Agradeço a oportunidade e que possamos nos encontrar na próxima!

(*) DEBATEDORES
Fernando Nuno - Nasceu em Portugal e veio para o Brasil antes de completar um ano de idade. Cursou Jornalismo e depois Letras. Trabalhou nas revistas da Editora Abril e foi editor do Círculo do Livro. Já editou mais de 3 mil livros. Também escreveu poemas e outras adaptações de clássicos da literatura.

Silvana Salermo - Nasceu em 1952, em São Paulo. Formada em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da USP, recebeu o Prêmio Figueiredo Pimentel "O Melhor Livro Reconto" de 2007 da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) por Viagem pelo Brasil em 52 histórias. É autora de Mini Larousse dos Direitos da Criança, de Brasil Criança (publicação do Itamaraty para apresentar o Brasil a crianças brasileiras e estrangeiras) e das traduções e adaptações de Germinal, de Émile Zola, e Ilusões perdidas, de Balzac, que receberam o certificado de Leitura Altamente Recomendável da FNLIJ. O volume mais recente da Coleção Germinal é Guerra e paz, de Tolstói, adaptação de Silvana lançada em maio de 2008.
Esther Contim Góes - Nasceu em São Paulo, em 24 de abril de 1946. Sempre quis ser atriz e então fez a Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo e formou-se em 1969. Sua carreira,porém, foi dividida sempre entre o teatro, o cinema e a televisão. Começou em 56, no filme:"A Estrada"; em 70 fez:"Uma Mulher para Sábado"; em 83 fez:"O Rei da Vela"; em 83:"A Próxima Vítima"; em 87:"Eternamente Pagu"; "em 90:"Stelinha"; em 94:"A Causa Secreta"; em 95:"As Meninas"; em 97:"Por trás do Pano"; em 2000:"A Hora Marcada". Também fez teatro, veículo para o qual mais se preparou e mais ama, tendo feito:"Tarsila"; "O Abajur Lilás";"O Amante de Madame Vidal"; "Santa Joana"; "Os Pequenos Burgueses"; "O Rei da Vela"; "Galileu, Galilei","Hair".
Maria José Nóbrega (Masé) - Bacharel e Licenciada em Língua e Literatura Vernáculas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Assessora em programas de formação continuada de professores junto ao MEC e a secretarias municipais e estaduais de educação. É assessora pedagógica em Língua Portuguesa da Coleção Presente, publicada pela Editora Moderna, e consultora pedagógica das revistas “Carta na Escola” e “Carta Fundamental”.
Juliana Silva Loyola (mediadora) - Possui Graduação em Letras pela Universidade de Uberaba (1987), Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1992) e Doutorado em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1997). Foi professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo de Março de 2006 a Abril de 2013. É professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo.- UNIFESP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Infantil e Juvenil e Teoria Literária, atuando principalmente na área Literatura e Ensino.


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