segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Resenha: A revolução dos bichos (George Orwell, 1945)

Companhia das Letras (2007), 152 páginas
"Eram sempre os porcos que propunham resoluções. Os outros bichos aprenderam a votar, mas nunca conseguiram imaginar uma resolução por conta própria".

Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo heterônimo "George Orwell", é o corajoso autor desta fábula estarrecedora, inspirada na tradição do frígio Esopo, do irlandês Jonathan Swift e em sua aguda percepção política que transcende seu tempo. Reconhecendo que a linguagem simbólica dos mitos e fábulas,  a exemplo de "O cordeiro e o lobo" e "As viagens de Gúliver", seria veículo eficiente para externar seu apelo à consciência dos povos, Orwell nos eletriza com esse "conto de fadas" com o intuito claro de nos tirar do torpor em que permitimos a insidiosa apropriação do poder político e social por suínos que chafurdam no lodaçal da corrupção e da prepotência.

No prefácio da edição ucraniana de 1947, Orwell relata uma breve autobiografia em que apresenta os motivos pelos quais escreveu "Animal Farm: a Fairy Story" (literalmente "Fazenda animal: um conto de fadas"), as "experiências através das quais cheguei à minha posição política". Crucial para esse trabalho, iniciado em 1943, foi sua participação ao lado de trotskistas na Guerra Civil Espanhola, 1936/37, tendo sobrevivido a um tiro na garganta e tendo "muita sorte de deixar a Espanha com vida". Havia se tornado pró-socialista "mais por desgosto com a maneira como os setores mais pobres dos trabalhadores industriais eram oprimidos e negligenciados", e à pouca admiração teórica por uma sociedade planificada ajuntou-se a valiosa lição de como era "fácil para a propaganda totalitária controlar a opinião de pessoas educadas em países democráticos". De fato, diria mais tarde que "cada linha de trabalho sério que tenho escrito desde 1936 tem sido escrita direta ou indiretamente contra o totalitarismo". "Assim, os principais contornos da história permaneceram em meu espírito por seis anos antes que eu a escrevesse."

O enredo começa com um porco teórico, o Major, que acreditava numa revolução prestes a estourar: os animais se rebelariam contra a tirania dos homens, origem de "todos os males de nossa existência", mais cedo ou mais tarde. Nessa luta, todavia, não deveriam se tornar como o inimigo, o Homem, e deveria haver uma solidariedade entre todos os animais, simbolizada por um hino sobre a "alvissareira novidade que virá" e o fim da miséria dos que não possuíam mais do que a própria pele.
Eric Arthur Blair,
"George Orwell"
(1903 - 1950)

A rebelião então acontece, de improviso, em resposta aos maus tratos que o fazendeiro, Sr. Jones, infligia impiedosamente às criaturas. Vitoriosos, os bichos passam a dirigir a granja, representados pelos sucessores do Major: Bola-de-neve, Napoleão e Garganta. Guiados pelos princípios de Major, sistematizados no Animalismo, eles estabelecem sete mandamentos que norteariam suas ações e relações nessa nova era de prosperidade e liberdade.

Os dias iniciais de euforia, as primeiras conquistas, o espírito coletivista, a abnegação nos esforços, etc., todavia, vão ficando para trás, e pouco a pouco emergem nessa nova sociedade antigas viciações que vão degenerando, um a um, todos os setes mandamentos, num enfraquecimento semântico que vai destituindo de significado os ideais iniciais, criando divisões de classes e estabelecendo um regime de terror e violência que vitimizaria todos os que quebrassem, real ou ficticiamente, a ortodoxia na conduta. E como "havia chegado uma época em que ninguém ousava dizer o que pensava", o regime totalitário se estabelece definitivamente, regido por uma única e cínica lei, que se tornou o meme mais instigante da produção orweliana: "Todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros". Como se não bastasse a sensação crescente de opressão que a leitura nos faz sentir, a obra, em seu último capítulo, nos choca com uma visão aterradora com a qual o gênio do autor premia não só a Literatura como a consciência política dos povos: a simplicidade estilística plena de significado de uma cena psicodélica e enauseante que encerra sua sátira distópica.

Embora curta, a fábula nos expõe aos principais sinais da instalação do totalitarismo em uma sociedade: a emergência de líderes, que se valem do clima de insatisfação popular com as condições atuais, e de uma ideologia, como uma religião, para se distinguirem entre seus pares; a confiança cega na panaceia ideológica e, bestialmente, em que os líderes a representem, mesmo quando os princípios originais são degenerados, sucessivamente burlados, sob a coberta de justificativas "razoáveis"; a criação de inimigos públicos, que desviem a atenção do oportunismo da casta governante; o uso da propaganda e do revisionismo histórico, expropriando a memória nacional e, com isso, invalidando a própria experiência individual, entre as massas; as perseguições, "pogroms"; culto pessoal do líder, egolatria; hipocrisia burocrática; manobras clandestinas; as agruras do cotidiano compensadas "pelo fato de a vida agora ter muito mais dignidade... mais canções, mais discursos, mais desfiles", copa do mundo (ops! essa falhou!); etc., etc., etc.

Embora Orwell tivesse em mente o mito do socialismo soviético, representando figuras reais em seus protagonistas animais (Marx, Stálin, Trotsky, Hitler... em quatro ou em duas patas), nenhuma explicação sobre isso aparece no texto. "Não quero comentar a obra. Se ela não falar por si mesma, é porque fracassou". E como o alvo do autor, ao longo de sua carreira, é o totalitarismo, não esta ou aquela manifestação da coisa, podemos ver nos porcos, cavalos, burros, galinhas, etc., os rostos de quem quer que atualmente esteja na trama da ascensão de um regime totalitário, seja em nível nacional, em nível institucional (no seu emprego, prezado leitor!), ou no nível da própria família.

Acho oportuno lembrarmos de Platão, em sua "República", elucidando a gênese da tirania. O sábio grego, quase meio milênio a.C., já via a democracia como a pior forma de governo justamente por essa transição natural para o totalitarismo, partindo do próprio povo a condução de tiranos ao poder. Essa é a mais irônica faceta de um sistema que parte do pressuposto da livre escolha: escolher não escolher. Nesse ponto deixo minhas ressalvas sobre "A revolução dos bichos": uma obra didática sobre parte desse processo mas que não cobre os bastidores de consciência que antecedem a animalização dos cidadãos. Hoje, somos todos bípedes implumes, desfrutando da mesma lucidez intelectual filogenética da espécie, ainda não entramos plenamente no estado de bichos de granja. Mas quem sabe a partir destas eleições, não?

Esta edição possui um posfácio do jornalista Christopher Hitchens, que recapitula a história do conto, e, mais preciosos ainda, os prefácios perdidos de Orwell: uma defesa apaixonada pela liberdade de imprensa, acusando a "covardia intelectual" e a "mentalidade de gramofone" dos que fingem não notar a adoção de métodos totalitários mas não veem que "pode chegar o momento em que deixarão de ser usados a favor para se voltarem contra o indivíduo"; e  uma auto-apresentação para os leitores ucranianos, refugiados na Alemanha.

"Animal Farm", desenho animado de 1954, pago pela CIA, Agência Central de Inteligência (EUA), para propaganda contra o comunismo durante a Guerra Fria. Aliás, a expressão "Guerra Fria" também foi cunhada por Orwell.

Um apêndice oportuno: "O cordeiro e o lobo", de Esopo


Um lobo havia visto um cordeiro bebendo na margem do rio. Querendo um pretexto para devorá-lo, disse:
- Estás a babujar a água que eu bebo!

O cordeiro arrazoou:
- Isso não é possível: o rio corre daí para cá.
- No entanto, tens comido da minha grama!
- Não, senhor. Ainda não desmamei. Não como nada sólido.

O lobo, inconformado:
- Mas ano passado insultaste meu pai!
- Mesmo há seis meses, eu nem era nascido.

Então o lobo se enfureceu, saltou sobre o cordeiro e o estraçalhou.

Aqueles que estão decididos a fazer o mal não recuam ante a boa razão.

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