sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Resenha: "Kama Sutra" (Mallanaga Vatsyayana, 1883 - versão inglesa)

Ed. Martin Claret (2004), 190 páginas
"Kama é a fruição dos objetos apropriados pelos cinco sentidos: a audição, o tato, a visão, o paladar e o olfato, auxiliados pela mente e em conjunto com a alma.

"O principal, aqui, é um contato especial entre o órgão do sentido e seu objeto: a consciência do prazer oriunda desse contato chama-se Kama.

"Kama deve ser aprendido nos Kama Sutra (Aforismos Sobre o Amor) e com os hábitos dos cidadãos."

Ficou interessado, não é, estimado leitor? Eis uma obra que poucos devem ter lido por completo, ou sequer conheceram, mas dificilmente não haverá alguém que não associe "Kama Sutra" a posições sexuais de tirar o fôlego. Bom, se não é o teu caso, leitor, era o meu. E, como um dos intuitos da nossa proposta de resenhas é quebrar paradigmas sobre as obras clássicas, eis um desafio diante de um clássico da literatura hindu.
Mente aberta,  iniciei a leitura, numa versão sem figuras, excetuando a que está na capa (para manter o foco da mensagem: minha sugestão): exclusivamente texto. Eis uma obra que me surpreendeu, porque, contrário ao que eu pensava, as partes que tanto nos são conhecidas (as descrições de posições sexuais) não é o que se destaca.

O processo de amar que ocorre num relacionamento amoroso tem no contato físico uma das formas de demonstração de afeto. Notar a reciprocidade de desejo de um casal é um dos termômetros de sintonia, mas não o único. Eis a grande surpresa: o ato físico de amor como filosofia de vida - uma brincadeira a ser feita entre os amantes para aproximar e fortalecer a relação, contribuindo para o desenvolvimento do amor. Acredite, mais do que um manual sexual, "Kama Sutra" lhe fará refletir sobre a magia desse encontro e, por vezes, irás rir muito em certas passagens.

Sir Richard Francis Burton
(1821 - 1890)
Para início de conversa, a data de 1883 é o da publicação em língua inglesa da obra, por Richard Francis Burton. Todavia, a obra original não possui uma data certa, assim como não sabemos quase nada a respeito da vida de seu autor Mallanaga Vatsyayana. O que se conjectura é que ele tenha vivido entre o primeiro e o sexto século da era cristã!

Imprescindível as leituras dos textos introdutórios da obra. Neles encontraremos explicações sobre o contexto dos escritos, assim como aspectos que fizeram parte da tradução para o inglês, e referência de obras que tomaram Vatsyayana como referência, exaltando-o, portanto, como "principal mestre da literatura erótica hindu".

Ainda, o mais importante na minha opinião, a leitura do prefácio da Introdução do livro, propriamente dito. Nele, teremos a apresentação de três conceitos essenciais para a compreensão do texto que será apresentado. Conheceremos os termos Dharma ("aquisição do mérito religioso"), Artha ("é a aquisição de riqueza, propriedade, etc.") e Kama ("é amor, prazer e gratificação sensual"). O objetivo de tais fases nas conquistas do homem durante a sua vivência é alcançar o Moksha ("a dispensa de posterior transmigração"). Veja apêndice ao final da resenha, no qual explanar-se-á com mais detalhes a relação entre estes três aspectos da vida do ser humano (não deixe de ler, certo?).

Está a obra dividida em sete partes: I - Introdução; II - sobre a união sexual; III - sobre a aquisição de uma pessoa; IV - sobre a esposa; V - sobre as esposas alheias; VI - sobre as cortesãs; e VII - dos meios de atrair pessoas.

Aspecto relevante, que deve ser levado em consideração, é que estamos lendo uma obra que retratará uma sociedade cujos costumes são bem diferentes da cultura ocidental. O casamento é um ato de negociação: muitas vezes os noivos só se conheceriam no dia da celebração da união. Verdadeiros desconhecidos, mas com um compromisso para a vida inteira. O estudo do Kama Sutra era uma oportunidade de aproximar esses casais, permitindo a alegria entre os corpos, como ponte para alcançar o brotar do amor. O que se nota, portanto, é que a obra funcionará como dicas de conquistas para alegrar a vida a dois enquanto o Amor vai sendo cultivado.

"Durante os três primeiros dias após o casamento, a mulher e seu esposo deverão dormir no chão, abster-se dos prazeres sexuais e comer seus alimentos sem temperá-los com álcali ou sal. Nos setes dias seguintes, banhar-se-ão ao som de instrumentos musicais auspiciosos, adornar-se-ão juntos e darão atenção aos seus parentes, assim como àqueles que por acaso tenham vindo testemunhar seu casamento. (...) Na noite do décimo dia, o homem começará a falar carinhosamente à sua jovem esposa, a sós com ela, de modo a inspirar-lhe confiança. (...) Vatsyayana diz que o homem deverá começar a conquistá-la, e a infundir-lhe confiança, abstendo-se porém, no princípio, dos prazeres sexuais. As mulheres, possuindo uma natureza terna, precisam de inícios ternos, e quando são abordadas à força, por homens a quem apenas conhecem ligeiramente, passam às vezes a odiar a relação sexual, chegando em algumas ocasiões a odiar inclusive todo o sexo masculino." (sublinhado meu)

O que se destacou para mim é que, no modo ocidental de viver, muitas vezes esquecemos que o casamento precisa que certos aspectos sejam preservados. A rotina e os cuidados inerentes a uma família, principalmente quando se tem filhos, não podem invadir ou obscurecer o lado íntimo do casal. Esse compromisso precisa ser assumido por ambos. Eis a grande graça da obra: tudo nele só tem valor e propósito se os amantes estiverem de acordo. Os ensinamentos são para o prazer do outro, e não o seu. E quando um procura amar ao outro, ambos encontram o prazer juntos. A consecução do ato é a parte que menos importa, mas toda a apresentação (higiene corporal, cuidado com as vestimentas, os perfumes/óleos, o preparo do ambiente, o avançar em busca de conhecer o outro fisicamente, as marcas) é que fará o encontro dos corpos se tornar um encontro de almas. Boa parte da obra, portanto, é dedicada a descrever atitudes que despertem o interesse do outro assim como perceber quando se é correspondido: brincadeiras, toques, olhares, tons de conversa, enfim, gotas de sedução para despertar o desejo.

Há passagens na obra que é impossível não rir, mas tudo depende da sua vivência e pudores. O autor não é vulgar, mas também não é pueril em sua escrita. Por isso o texto, por si mesmo, dispensa imagens; acredite, o que está escrito já o fará ir longe na imaginação. Mas o fato de não ter imagens leva-nos a nos ater no que foi dito antes e depois, fazendo esta parte não ser a mais importante, mas parte do processo de se alcançar o Kama.

Infere-se do texto, ainda, que neste momento de intimidade não há disputa, mas entrega, de um para o outro. Não se busca o prazer para si, mas o do outro. A simples doação que nos leva ao encontro de nós mesmos. Quem diria: a ideia do amor como doação não é uma novidade do mundo moderno. Seja em textos bíblicos, seja em manuais de erotismo, a regra é básica. É lamentável que, embora seja muito ensinada, pouco é aprendido.

Por ora, no que diz respeito a esta obra, minha conclusão: leitura instrutiva e divertida.

Não deixe de conferir!

Apêndice: Sexo e Filosofia indiana

(Por Lykándros)

Um livro não é um conjunto de palavras. Até mesmo as palavras só têm significado no âmbito de uma visão de mundo que simboliza na linguagem o que a cultura apreendeu da realidade. "Kama Sutra" tem uma enormidade de barreira semiótica a transpor para se fazer entendido no Ocidente: é que nunca foi tão abismal a discrepância da percepção da sexualidade humana  entre diferentes povos como entre o antigo hindu e o ocidental contemporâneo.

Kama Sutra foi traduzido para o inglês por três eruditos patrocinados por Richard Burton, que colaborou com traduções de manuscritos correlatos, complementares, enriquecendo o trabalho principal. Seu grande mérito foi ter trazido a obra a lume em plena Era Vitoriana, a despeito de toda a pretensa pudicícia salvaguardada nos meios aristocráticos ingleses. Havia lei contra circulação de obras "pornográficas" (o "Ato de Publicações Obscenas", de 1857) e Burton teve de criar uma sociedade, a Kama Shastra, para publicar o clássico indiano em círculo fechado de leitores a fim de escapar à censura e à cadeia. Foi impressa em 1883, privativamente, enquanto que, em gritante contradição com o espírito moralista da época, pululavam nas ruas de Londres cafetões, prostitutas de todas as idades - inclusive meninas de 9 ou 10 anos! - , usuários de ópio e ... cinco anos depois, um tal de Jack, o Estripador: um caos sexual.

A psique de uma sociedade auto-incoerente só poderia acolher de forma pervertida o trabalho do guru Mallanaga Vatsyayana. E é a mesma mentalidade que caracteriza o público de hoje. "Kama Sutra" se tornou sinônimo de "livro de sacanagem" ou, na melhor das hipóteses, um manual de posições exóticas para a cópula. Não bastando ver-se nele apenas aquilo de que se agrada, de fato circulam no meio editorial outros "kamas sutras", voltados exclusivamente para a excitação da imaginação de um mercado consumidor que vê o próprio ato sexual, e suas faculdades  genésicas, como produto, sujeito a "standards industriais" e a medições de desempenho: comprimento, circunferência, volume de ejaculação, volume de gemidos, duração do coito, mapas de zonas erógenas, ferramentas masturbatórias, drogas, etc. Conquanto a mente científica dos pensadores indianos cogitasse de todos esses aspectos mecânicos do sexo, a concepção ideológica é diametralmente oposta à da "filosofia" dos leitores ocidentais.

Um "sadhu" (homem santo) orando com um tipo de
rosário. Ao fundo, os "ghat" (escadaria) de Benares (Varanasi) 
Embora se saiba pouco sobre Vatsyayana, ele próprio deixou alguns rastros com que podemos conhecê-lo o suficiente, e de quebra, à sua obra. Ele diz que "foi escrito este tratado segundo os preceitos das Sagradas Escrituras, em benefício do mundo, por Vatsyayana, então estudante de religião em Benares e inteiramente entregue à contemplação da Divindade" (grifo nosso). Esse período de sua vida é aquele em que o homem busca o Moksha, a libertação do ciclo de renascimento e morte, das "transmigrações". Segundo suas palavras, é na prática do Dharma que o aspirante a "mukti" (liberto) se dedica ao estudo das Escrituras. Ao mencionar o "trivarga" (as três ocupações mundanas do homem), Vatsyayana diz que o Dharma deve ser realizado "na velhice". Então, supomo-lo um idoso, já experiente no Kama e no Artha (as outras duas ocupações), imerso nos livros e na meditação, pois o "Kama Sutra" foi escrito "depois de lidas e ponderadas as obras de Babhravya e outros autores antigos, e de reflexões sobre o significado das regras por eles formuladas", num "pequeno volume como súmula de todos os trabalhos" anteriores.

Ao hierarquizar as ocupações do "trivarga" pondo o Kama, os prazeres, em último lugar, embora os reconheça como "tão necessários à existência e ao bem-estar do corpo como os alimentos", e depositar no Dharma o foco de sua libertação, podemos supor que "o bom e velho Vatsyayana" não fosse um praticante do Tantra, uma de várias correntes de pensamento existentes na Índia, surgido por volta de 500 d.C., que utiliza justamente o Kama em seus ritos e, contrariamente às filosofias da libertação, sequer almeja o Moksha, insistindo "na santidade e pureza de todas as coisas", que "Maya, a ilusão universal, não deve ser rejeitada, e sim abraçada", de forma tal que, afinal, "quem deseja o Nirvana?" (o estado de liberto). Segundo o Tantra, "o homem em geral tem de ascender através e por meio da natureza, sem rejeitá-la". Todavia, no rito, que em si "confirma a concepção de que tudo é divino", o aspirante deve conseguir uma "superação real [de seus] medos e desejos", "a criatura passional deve dissipar seu senso de ego". Assim, para o Tantra, "o ato sexual (maithuna), que constitui seu rito sagrado mais alto, não se realiza com o espírito de pashu", de gado, de animal humano de rebanho, e "nada disto faz com a ideia de ser um indivíduo que está satisfazendo suas próprias necessidades limitadas, como um animal que furta da natureza [...] o prazer que sente". Enfim, e é algo que nós ocidentais bem sentimos na pele, "na medida em que o pequeno ego considera seus próprios planos os melhores, resiste rigorosamente às forças de seu substrato divino [e os deuses] se tornam perigosos para o ego, e o indivíduo converte-se em seu próprio inferno".

As esculturas de "maithuna" (coito) no complexo do templo
de Khajuraho se explicam pela filosofia do Tantra.
Não obstante a divergência com o Tantra quanto o fim último da vida (libertação ou integração), e a concordância em que os prazeres são "emanações de Dharma e de Artha", que quem pratica o "trivarga" "desfruta felicidade tanto neste mundo como no outro", Vatsyayana deixa claro em sua "Ciência do Amor" a grande preocupação que permeia ambos os sistemas filosóficos indianos: o "tornar-se escravos das paixões" e bestializar-se, pois Kama é "algo praticado até pelos animais irracionais". Sua visão holística e valoração conscienciosa de cada ocupação na vida, sem que uma interfira na outra (em termos claros: sem que a busca de prazeres, Kama, comprometa o senso de dever, Dharma, e as realizações úteis em sociedade, Artha), o velho guru lega ensinamentos cruciais para nossa viciosa cultura ocidental - próspera materialmente, decadente espiritualmente.

Para encerrar, gostaria de citar mais uma vez os comentários do indólogo alemão Heinrich Zimmer (as citações do parágrafo sobre o Tantra são dele), desta vez sobre o papel de "Kama Sutra" na sociedade indiana:

"Esta obra deu à Índia a ambígua reputação de sensualidade, bastante enganadora [...] A atitude dominante dos indianos, na verdade, é austera, casta e extremamente recatada, marcada por uma ênfase nas atividades puramente espirituais e por uma absorção nas experiências místicas e religiosas. O ensinamento de kama surgiu para corrigir e evitar a frustração na vida conjugal, que deve ter sido muito frequente quando os casamentos por conveniência eram a regra e os enlaces por amor constituíam uma exceção. [...] Sem dúvida havia muitos lares onde imperava a tristeza e o tédio, e onde um pouco de estudo das ciências cortesãs poderia ser de grande utilidade. Este compêncio de técnicas de ajustamento e de estimulação foi coligido para uma sociedade de emoções frias, não libertinas." - Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia (1951), Ed. Palas Athena, 2008

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