sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Resenha: "1889" (Laurentino Gomes, 2013)

Ed. Globo, 416 páginas
"República no Brasil é coisa impossível (...) O único sustentáculo do nosso Brasil é a Monarquia. (...) Porquanto República no Brasil e desgraça completa é a mesma coisa." (Marechal Deodoro)

"Vejam os senhores, quem lucrou no meio de tudo aquilo foi o cavalo!" (Marechal Deodoro)

Último livro da famosa trilogia sobre a formação do Brasil enquanto nação, "1889" mantém a linha proposta pelo autor, o jornalista paranaense Laurentino Gomes, apresentando vasto cabedal de informações de forma clara e cativante. Sua abordagem do tema tem mostrado a muito brasileiro recalcitrante que leitura e História são sim atividades tão prazerosas quanto interessantes, reavendo, nos corações de estudantes e curiosos, o sentimento único na espécie humana que a faz voltar seus pensamentos para o passado em busca de respostas, por meio dum estilo redacional jornalístico, que mostra tão atuais como relevantes os acontecimentos pretéritos que confluíram para as questões palpitantes de nossa cidadania contemporânea.

Os 24 capítulos do texto propriamente dito são divididos em cinco grupos (sem identificação tipográfica), que abordam facetas distintas do processo que implantou o sistema republicano de governo no país. Além disso, complementa a exposição principal uma cronologia do "fim de século revolucionário" em que se insere o tema da obra, antes da Introdução, e oito lâminas em dois grupos, intercalados no texto, contendo 42 gravuras retratando personagens e eventos históricos mencionados.

A Introdução e os capítulos são sintetizados abaixo.

José Laurentino Gomes
(1956 - presente)

Introdução

Dá a tônica das temáticas que serão discutidas nas seções seguintes do livro. Começa avaliando o regime pela memória pública da Proclamação da República e aponta alguns aspectos que contribuem para o "fenômeno da indiferença coletiva". Comenta que, contribuindo para isso, as abordagens contrastantes de historiadores monarquistas e republicanos fizeram da queda da Monarquia um dos eventos "mais repletos de controvérsia" da história brasileira. Em seguida, apresenta os atores do drama da queda do Império: os escravocratas vingativos, os monarquistas desiludidos, os militares ressentidos, e as duas figuraças que dão rosto ao duelo de regimes no imaginário nacional - o imperador D. Pedro II e o marechal Deodoro da Fonseca. Finaliza a seção com uma breve abordagem ao sentido de "república" e com a exposição do propósito da obra e de seu seccionamento descrito a seguir.

Parte I - "Instantâneos" de dois momentos da Proclamação da República

Nesta parte, o autor apresenta duas "fotos instantâneas" de dois momentos da transição de regime. O breve primeiro capítulo traça uma comparação curiosa entre duas situações insólitas que expressam bem a mudança abrupta de governo e o efeito sobre os cidadãos pegos de surpresa. Já o longo capítulo dois narra os momentos cruciais do golpe militar que derrubou a Monarquia. O leitor ficará perplexo com a desordem acéfala que parece justificar a impressão de que "a Monarquia não foi derrubada, ela desmoronou".

Parte II - Panorama do Segundo Reinado

D. Pedro II
Os quatro capítulos da segunda parte apresentam um panorama do Segundo Reinado. O capítulo três, "O império tropical", dá uma visão geral das transformações nacionais realizadas no Segundo Reinado, o surgimento do senso de unidade nacional com a Guerra do Paraguai, os progressos pós-guerra e as mudanças no mapa do país. A vida no Rio de Janeiro, vitrine do Império, e em Petrópolis, ilustram as maiores consecuções do período. A economia do café, a escravatura e a imigração também figuram como aspectos chave para  a compreensão da economia e da sociologia do Brasil pré-republicano. Por fim, o autor apresenta a problemática da Monarquia em vista de sua herança maldita "dos passivos sociais, econômicos e políticos que o Brasil carregava desde sua fundação". A inevitabilidade do sistema monárquico de governo é ressaltada e há uma exposição das rebeliões do período regencial, em especial a Farroupilha, que terá conseqüências importantes para a instituição da República.

O capítulo quatro, como o próprio título já denuncia, "A miragem", trata de alguns aspectos da Monarquia brasileira que eram um "teatro de sombras" nem sempre correspondendo à realidade. Começa retomando Petrópolis como símbolo de "um país que aparentava ser mais civilizado, rico, elegante e educado do que de fato era ou seria no futuro". Aborda os problemas da própria experiência monarquista, da nobiliarquia, da centralização do poder, da patronagem, da construção de uma história oficial, do retrato do "país ideal em confronto com a barbárie do país real" e adentra nas questões de Estado e cidadania, em especial a corrupção do sistema eleitoral e o Poder Moderador (exercido pelo imperador).

D. Pedro II, como homem e instituição, é o tema do próximo capítulo. Sua infância trágica, sua educação rigorosa, seu intelectualismo, a frágil saúde, casamento e vida afetiva (as amantes!, com destaque para a condessa de Barral), seu dinamismo e pensamento político dão um retrato vivo do monarca que conduziu a mais longa e estável experiência democrática da América Latina.

O sexto capítulo fecha o balanço descrevendo as mudanças do "século das luzes", tanto técnicas (em especial nos transportes e nas comunicações) quanto ideológicas, que repercutiram também no Brasil, a começar pelo interesse científico de D. Pedro e terminando nas turbulências das "massas anônimas e perigosas" sacudidas pelos "ismos", que estabeleceram o "clima de mudança e ruptura [em] que se deu a Proclamação da República no Brasil".

Parte III - Campanha republicana

Benjamin Constant
(1836 - 1891)
Os sete capítulos desta seção apresentam os movimentos, atores e motivos que confluíram para a instituição da República no país. O capítulo sete, "Os republicanos", trata dessa atmosfera de revolução: os discursos inflamados, as quatro classes de pensamento republicanista , os pretensos antecedentes históricos (com Tiradentes e Frei Caneca como mártires), os jornais, a convenção de Itu, o papel do café e do escravagismo como catalisadores da revolução e, na contracorrente, o curioso fato da apatia da população ante a proposta do novo regime, demonstrada no fraco desempenho republicano nas urnas.

O breve capítulo oito aborda o clima acadêmico e a origem do celeiro da "mocidade militar" que, embalada pelo Positivismo (cujas origens e ideias também são apresentadas aqui), via-se como uma elite intelectual, "os científicos", responsável pela implantação da República "de cima para baixo", um "governo (...) ditatorial, e não parlamentar".

Os ensejos da participação militar no golpe de 1889 são apresentados em "A chama dos quartéis". Incidentes relacionados a indisciplina dos soldados e a medidas atrapalhadas do governo dão origem à chamada "Questão Militar", que poria o braço armado do Império contra a própria Monarquia. Enquanto a benevolência de D. Pedro II ironicamente concorria para o enfraquecimento do governo, e Benjamin Constant obtemperava a truculência dos rebeldes, um novo e crucial personagem era arrastado para o vórtice da revolução, ressentido em sua vaidade: Marechal Deodoro.

Os próximos dois capítulos tratam justamente desses dois fulcros sobre os quais girou a roda revolucionária republicana. O décimo traz uma breve biografia de Deodoro, aliás desde seu pai, e avança por sua participação na Guerra do Paraguai como "tarimbeiro" que progrediu na hierarquia "sempre por atos de bravura", mas que se mantinha monarquista até às véspera do 15 de novembro. Os motivos que o levaram a assumir a liderança dos militares no golpe de Estado surpreenderão o leitor tanto quanto sua aparência de janota que nada lembra o cavaleiro de espada em punho no famoso quadro de Bernadelli.

Aliás, a injusta propaganda desse quadro (exibido na página 9 do livro) ressalta quando descobrimos no azarado, mas inteligente, Benjamin Constant Botelho de Magalhães o mentor intelectual do republicanismo no Brasil. O ídolo da mocidade militar é o personagem principal no caso único na história do país "de uma revolução política dirigida por um professor de matemática".

Também contribuiu para a campanha republicana a confusão entre Monarquia e escravidão. O abolicionismo, objeto do capítulo doze, movimento como nenhum outro "que empolgasse tanto a consciência da nação", dá ensejo a uma descrença no regime imperial. Embora Joaquim Nabuco arrazoasse que "a grande questão para a democracia brasileira não é a monarquia, é a escravidão", para os republicanos "as duas instituições se defendem, ambas pelos mesmos argumentos: a tradição, o costume e a lei". As emocionantes iniciativas pela libertação dos escravos, começando no campo, agitando as cidades, e repercutindo na família real, e só posteriormente no Partido Republicano e na Igreja Católica, são descritos aqui. Mas, após decretos de leis paliativas, com a definitiva "Lei Áurea", o custo social da abolição seria o "holocausto do Império".

Fechando a análise do pano de fundo em que soçobraria a Monarquia (capítulo treze), o problema do Terceiro Reinado é apresentado na figura da Princesa Isabel, rejeitada para sucessão de D. Pedro II por sua carolice e lealdade mais ao papa que ao país; na chamada "Questão Religiosa" entre governo (pró-maçonaria) e Igreja Católica; e na antipatia popular pelo conde D'Eu, marido de Isabel, sendo ambos responsabilizados "por virtualmente todas as mazelas nacionais" nas cáusticas propagandas republicanas.

Parte IV - Outros detalhes relacionados à troca de regime

A penúltima parte do livro retoma em quatro capítulos mais alguns detalhes da troca de regime. A crise do governo se evidencia na visível incapacitação progressiva de D. Pedro II para a liderança do país, doente e cansado, que "nem de longe lembrava a figura poderosa e carismática que por quase meio século conduzira com firmeza, paciência e sabedoria os destinos da nação". Uma sucessão arruinada pela "inabilidade política" do conde D'Eu e pela perda da sanidade mental do neto de D.Pedro II se complementa com a desmoralizada tentativa de reforma político-social intentada pelo gabinete do visconde de Ouro Preto na imagem de enfermidade incurável pintada pelo capítulo catorze.

A despedida irônica da Monarquia acontece no famoso Baile da Ilha Fiscal descrito no capítulo quinze. Por motivos diplomáticos, o governo arrasta a austera família imperial a uma festa de arromba, de proporção jamais promovida em todos os 67 anos da Monarquia, isto é, desde a Independência.

No capítulo "A queda", as reações de D. Pedro e aliados - ante a notícia do golpe, desde a descrença no "fogo de palha" até o momento em que "já agora é tarde" - e dos republicanos - ante o gabinete imperial que derramaria o "copo cheio de mágoa" de Deodoro e  a compreensão de que os Estados Unidos do Brasil precisava de "alguma cor de legalidade" - revelam dois lados incompetentes em agir e reagir, atarantados no desempenho de seus papéis na História.

"O adeus" traz o melancólico destino da família imperial, expulsa do país "pela vontade poderosa da revolução". Aterrorizados pelo governo provisório, que às pressas cumpriria seu "mais doloroso dos [...] deveres", o ex-imperador, agora civil, Pedro de Alcântara e sua parentela são banidos desta "pátria de nós estremecida" e desembarcam na Europa, onde seus destinos seriam selados até que seus despojos mortais retornem ao "Brasil indiferente e ingrato" em 1921.

Parte V - Implantação, consolidação e balanço da República

Nos sete últimos capítulos adentramos os primeiros anos do novo regime. O capítulo dezoito descreve as reações ao novo regime por parte da população, que "assistiu àquilo bestializado", como se fosse uma parada militar; através do país, onde, apesar da resignação geral, surgiram minguadas reações contrárias; e dos republicanos de última hora, "pretendentes importunos dos proventos e honras de uma situação que não ajudaram a criar". O uso da força, sob a retórica de "leis indefectíveis", é também já evidente nas primeiras medidas da ditadura do Marechal Deodoro.

Em "Ordem e Progresso", o autor apresenta algumas medidas da República para apagar a memória da Monarquia. Mudanças em nomes de ruas, protocolos e até na historiografia buscam uma nova "formação das almas". Aqui também ficamos sabendo como dois símbolos imperiais conseguiram sobreviver quase imunes às reformas na imagem nacional: o Hino e a Bandeira.

Nos dois capítulos seguintes, temos um panorama das mudanças políticas, com destaque para a primeira constituição republicana, e do desastroso programa econômico de Rui Barbosa, o "encilhamento", que transformou o Brasil em "um país de papel". Encerrando o primeiro ano do novo regime, temos as crises ministeriais que tirarão dos bastidores outro ator crucial na consolidação da República no país: o controverso Marechal Floriano Peixoto.

Sobre ele discorre o capítulo 22, "O caboclo do norte". A abdicação de Deodoro após o "Golpe de Três de Novembro", a ascensão de Floriano que, como "serpente constritora", "cresceu, prodigiosamente, à medida em que prodigiosamente diminuiu a energia nacional", seu desrespeito à constituição e abusos de poder caracterizam um dos mais desalentadores momentos políticos do Brasil, até mesmo para patriarcas da República, desiludidos com seus sonhos.

O capítulo 23 trata do confronto entre pica-paus e maragatos, originado das disputas políticas do Estado que era "o pesadelo do governo", o Rio Grande do Sul, e banhou o país de sangue de degolas coletivas e fuzilamentos: a Revolução Federalista. Seu início no feudo ditatorial gaúcho, o papel da segunda Revolta da Armada no Rio de Janeiro, e a resistência paulista que freou "a besta-fera do sul" terão como conseqüência a subida à presidência da primeira representação civil da República.

O fechamento da obra é o capítulo 24, "O desafio", que aborda a difícil tentativa de desmilitarização do país, por um solitário Prudente de Morais, contra a má-vontade para essa transição demonstrada pelos partidários de Floriano, os "jacobinos", e por Campos Salles e sua "política dos governadores", entregando o poder dos Estados a "caciques políticos locais", os "coronéis", medidas que, até 1984, quase 100 anos da queda da Monarquia, ainda não tinham realizado o sentido da palavra "república": a incorporação do povo na construção de seu [próprio] futuro".


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Um comentário:

  1. Ufa!!! Já deu para perceber que este último livro da trilogia de Laurentino Gomes promete! Quanta informação, situações, mudanças e reviravoltas! Daniel, agradeço muitíssimo a resenha: é grande vontade de pegar o "1889" e ler os detalhes que falaste mas não descreveste, com o intuito, óbvio, de atiçar a leitura. Realmente, obras assim devem ser sugeridas em escolas: restituir à disciplina de História o caráter de ciência, não de matéria para se decorar nomes de pessoas e datas. Conhecer a História é conhecer nossa realidade no momento, avaliando o que nos espera o futuro. Como se pode observar, o que temos, sempre, são consequências de causas que estavam ali, todo o tempo nos dizendo o que poderíamos esperar. Grata pela resenha, mais grata ainda pela sugestão da leitura das obras do Laurentino. Foi um ganho, sem dúvida!

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